Como brasileiro mediano que sou, tenho o futebol como esporte favorito, torço para um time, assisto a jogos semanalmente e sinto falta deles no período de férias dos jogadores (que, aliás, está chegando). De tanto contato com o esporte bretão, ao longo da vida fui adotando o “mundo do futebol” como metáfora da vida em sociedade, um laboratório para enxergar a vida como ela é, ou – em algumas situações – como ela deveria ser.
O homem formando tribos, vivendo em grupos, competindo sempre, mas submetido a regras. Se um estádio agrupa pessoas pelo poder aquisitivo e as distribui por camarotes, arquibancadas especiais, arquibancadas cobertas, descobertas e, até há pouco tempo, pela “geral” (aquele fosso ao lado do campo em que a galera pagava baratinho para assistir à partida em pé), lá dentro todos têm voz e igualam-se em objetivos, na tristeza da derrota ou na alegria da vitória, cantando em coro e festejando juntos. No campo, os times – que eu prefiro ver como empresas. Companhias que atendem a consumidores, contratam funcionários para cumprir determinadas funções e estão submetidas à avaliação implacável dos clientes, a torcida. Um ambiente repleto de nuances interessantes e de onde acostumei-me a extrair várias análises do comportamento humano que, inclusive, foram-me bastante úteis na carreira profissional.
Conversando com o personagem
Nesta semana, porém, um personagem – de uma história que atualmente dedico-me a escrever – emparedou-me com algumas dúvidas. Seria o mundo do futebol realmente uma metáfora da vida em sociedade ou fuga dela – e de suas regras -, um lugar onde o homem pudesse voltar à natureza e se sentir autorizado a agir como manda o instinto? Seria o “homem-torcedor” um desvirtuamento do homem natural ou sua revelação? E, sendo o homem-torcedor o homem natural (e verdadeiro), este seria o homem mau, na versão simplificada atribuída a Thomas Hobbes, ou o bonzinho, na atribuída a Jean-Jacques Rousseau ?
Confesso que minha capacidade de pensar filosoficamente jamais alcançou sequer a profundidade de um pires e, por isso, para escapar às duvidas lançadas pelo personagem, pus-me a comparar as atitudes visíveis, os comportamentos notáveis e as sensações vividas, aí, sim, minha praia. E talvez isso tenha piorado as coisas.
Hobbes e Rousseau na prática
Na sua empresa, quando um dos seus erra, você vaia o erro? E, se a pessoa errasse novamente, você passaria a persegui-la, vaiando-a a cada vez que tentasse acertar? Já vi isso acontecer no futebol, e não foram poucas as vezes. Um comportamento compreensível, mas incoerente, principalmente se considerarmos que dentre os que vaiavam estavam pessoas que agiriam diferentemente em outras ocasiões, líderes de equipes, professores, gente bem formada.
Era o homem natural agindo? Ponto para Hobbes?
Numa audiência pública, se o juiz desse ganho de causa à outra parte, você o ameaçaria, acusando-o de roubar e xingaria a mãe dele (mesmo sabendo que ele tem razão)? E no estádio, você já viu alguém fazendo algo parecido?
Dois a zero para Hobbes.
Na rua, alguém seria capaz de simular ter sido vítima de agressão para tentar embolsar uma indenização? No campo, quantas vezes – por partida – os jogadores fazem isso? E aí? Os torcedores condenam o comportamento? Ou só condenam as simulações dos adversários?
Notei que Rousseau ia perdendo de lavada, mas o pior veio quando passei a comparar o comportamento no pós-jogo.
A derrota continua
Se alguém achasse uma carteira na rua (com dinheiro e documentos) e fosse contatado posteriormente pelo dono da carteira – munido de um filme comprovando que foi ele a encontrá-la – a carteira seria devolvida? Ou a pessoa que a encontrou apenas diria que “ganhar assim é mais gostoso”, riria do perdedor e o mandaria parar com o “mimimi”? Resposta fácil, se a pergunta fosse feita fora do mundo do futebol.
E se aquele seu amigo não conseguisse a promoção que esperava, você o consolaria e procuraria dar-lhe forças, ou tripudiaria dele? Imaginaria uma pessoa sendo capaz de, imediatamente após descobrir o fracasso do amigo, enviar-lhe uma mensagem pelo celular: “se ferrou, hem? kkkkkk.”? Ou o colega que foi promovido no lugar dele enviando-lhe outra mensagem – chupa, fulano! – e vindo soltar rojões em frente da sua casa?
Quando uma criança ingênua – o homem natural ainda não tolhido pelas regras da Sociedade – quer suplantar o amiguinho (meu pai é mais rico que o seu, o carro do meu pai é mais bonito que o do seu…), os pais a orientam a não agir assim, não orientam? É feio! E quando adultos repetem o comportamento comparando seus times aos dos “amiguinhos”? Não o fazem por ingenuidade, fazem? É feio?
Futebol é diferente?
E as comparações também poderiam ser passadas aos outros esportes. Nos Jogos Olímpicos, por exemplo, não me lembro de ter ouvido vaias ao saltador do país adversário que não conseguiu ultrapassar o sarrafo. Nem de a torcida adversária ter tentado atrapalhar sua concentração antes do salto. Pensei na cobrança de pênaltis no futebol… Aliás, quase nenhum comportamento desse tipo poderia ser encontrado em outros esportes, só no futebol.
Segui com a comparação, lembrei-me da corrupção tolerada de dirigentes e da violência de torcidas organizadas. Rousseau continuava sem marcar gol e eu poderia estender-me por páginas e páginas, elencando facetas do homem-torcedor, essa espécie de Dr. Jekyll que vira Mr. Hyde ao adentrar um estádio, ou, para outros, um Dr. Bruce Banner que se transforma em incrível Hulk quando o assunto é futebol. E quem dentre eles seria o homem natural, o verdadeiro? Jekyll e Banner ou Hyde e Hulk?
Sem chegar a qualquer conclusão – e talvez concluir algo nem fosse tão importante, ou possível -, deixei que meu personagem continuasse em suas elucubrações e decidi usar aquelas comparações em meu proveito, em proveito da minha evolução como homem-torcedor. Trazer meu comportamento no futebol para algo mais próximo da vida em sociedade, voltar a ser Jekyll (com uma ou outra pitada de Hyde, que ninguém é de ferro). Será que vai dar? Vou tentar.
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